sexta-feira, 5 de abril de 2019

Glauber vive: Resistir para não se negar

Segue abaixo uma brilhante carta que encontrei no site do Instituo Moreira Salles (https://www.correioims.com.br/carta/resistir-para-nao-se-negar), enviada por Glauber Rocha para Jomar Muniz de Brito, dois anos após o golpe militar, assim, portanto, em um ambiente de efervescência politica e social sob um constante medo do futuro próximo, qual seria.
Como muito bem me orientou o Dr. Volmir Cardoso Pereira é necessário cautela na associação entre o Glauber e a Ditadura militar, pois, retornando do exílio, ele publicamente apoiou o General Ernesto Geisel no seu tempo do regime. Como se deu tal apoio é papo de outra conversa. 
Focamos aqui, no caráter poético e engajado da carta.

_________________________________________________________________________

Rio de Janeiro, 1966
Querido Jomard,
Estive aqui folheando lentamente o teu livro[1] e lhe asseguro que vou ler com o maior interesse, porque já vi que você fez um estudo inteli­gentíssimo sobre nossa Cultura! e sobretudo porque descobri, num relance, que os autores citados por você, revistos e essencializados! dão mesmo uma Visão brasileira, complexa, contraditoriamente subdesenvolvida — e tudo assim continua mesmo depois do Golpe, quando nós nos vimos traídos, quando não sabemos bem quem e como surgiu esta nova época, quando a outra era tão promissora. O quanto aprendemos, eis o vero.
Sua carta, suas notícias, tudo isto é muito bom; preocupei-me muito contigo, não sabia onde estavas e só agora soube da prisão[2] e que outra vez estavas livre e trabalhando; foi tão estranho nosso último encontro, você ficou num grande silêncio realmente, a minha casa desmontada, tive a im­pressão de que tínhamos envelhecido e que, pelo menos eu, já estava sofrendo da antonionesca moléstia da incomunicabilidade. Depois da sua vi­sita eu viajei com Deus e o diabo…,[3] veio a queda de Jango, eu voltei com tudo mudado e as pessoas dispersas, desmoralizadas, tristes. E eu fui acometido da mais brutal crise de toda minha vida: no momento em que assumi uma profunda visão dos problemas políticos acumulei uma total desilusão sobre os sentimentos — e uma coisa ficando na dependência da outra me levou a tamanha fossa, como se diz na ipanêmica gíria, que pensei em emigrar até para Hollywood, até pensei inclusive em me demitir da terra e dos ofícios e lhe confesso que não estou ainda bastante curado — ando cheio de decep­ções, de muitas dívidas, de um cinema ingrato, de tudo na estaca zero de­pois de tantos anos de luta, da Paloma crescendo sem ter direito onde mo­rar, de minha mãe cada vez mais nervosa, da loucura que domina o asfalto, do individualismo hipócrita coletivo do carioca, da vigarice intelectual, da parada no sucesso das letras e artes, do esquerdismo visceral e bossal, do direitismo monstruoso e corrupto, das migalhas comunistas que muitos co­meram sem saber por quê, da confusão tão primária entre alienação e participação e da miséria de não ter dinheiro, de ter que resistir para não se ne­gar, de ter que ir levando, pensando e sofrendo e a cada instante querendo morrer e ser então assaltado pela esperança, pelos deveres, pelos processos e pela responsabilidade!
Posso lhe dizer que nada mais lhe digo além disto: que tua carta me emocionou e a única coisa boa deste filme é sair na hora e vingar as pessoas e responder à brutalidade — mas o povo não entende, o povo vaia e ape­dreja, e eu fiz para o povo — imagine que mito besta é o povo. A gente en­velhece, caríssimo, descobrindo-se amargo e querendo a mesma paz da paz do mineiro Drummond, e quer emigrar para a Flórida ou para as ruínas de Roma, ficar tomando sol e ganhando dinheiro fácil.
O que vai por aí neste distante Pernambuco do Recife? Como aguentas a província brutalizada, a lama do subdesenvolvimento, o feijão, o angu, as ve­lhas lotações, as estradas sujas, as ruas esburacadas, as moças sonhadoramente ansiosas na longínqua maquilagem, a brutalidade adolescente dos rapazes, os ve­lhos latifundiários, o arrivismo, os jovens poetas sinceramente dispostos a tudo salvar? Ah, meu querido, como tens mais resistência do que eu, tens a divina paciência para o magistério, a calma sacerdotal dos justos e dos puros! — eu não suportaria ver os tanques, as bandeiras, as flores pátrias, nada.
Como você vê, estou amargo e gongórico.
Aqui te deixo, espero uma carta sua, que poderei responder ou não brevemente. Mas escreve falando de você e de tua vida.
Um abraço fraternal do seu amigo
Glauber
Glauber Rocha. Cartas ao mundo. Organização de Ivana Bentes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 267-269.
[1] N.E.: Glauber refere-se ao livro Do Modernismo à Bossa Nova, Ed. Civilização Brasileira, 1966, que prefaciou.[2] N.E.: Jomard foi preso com a equipe do professor Paulo Freire, em 1964.[3] N.S.: Deus e o diabo na terra do sol é filme de 1964, dirigido por Glauber Rocha. Foi indicado à Palma de Ouro do Festival de Cannes.